quinta-feira, 24 de março de 2011

EMPEREQUETADA



Nos meus vinte e poucos anos eu sonhava em ser dançarina, mas não uma dançarina comum, dessas que preenchem o fundo de programas de auditório ou dessas que fazem intermináveis pliês. 
Queria algo a mais, um certo glamour. 
Queria ser uma dançarina de cabaré; pura fascinação por plumas, e anáguas, corsets e copos de matinis. Me imaginava no palco, tirando peça por peça de roupa, os homens arrebatados; eu de batom vermelho, cinta-liga e muito laquê, som de saxofone e puro jazz. 
Nessa época as pessoas não ouviam tanto jazz, a sofisticação havia ficado em segundo plano; ninguém se penteava mais desde 67, mas eu, não. Eu continuava dormindo com amarração, acordava sempre com lindos cachos, usava pó de arroz no rosto, mas não precisava ainda enrubrecer minhas bochechas, pois a juventude ainda fazia isso por mim, tinha uma pele ótima, apenas usava batom vermelho e um fino traço preto por sobre os cílios. Parecia deslocada? Sim, mas não me importava; ostentava um longa cigarrilha preta dentro do trem enquanto ia para meu emprego mediano. Que obviamente não merecia tanto emperequetamento.
Naquele dia enquanto voltava para casa uma idéia me martelava: Porque tanto enperequetamento? Ninguém liga, ninguém vê.

Vou parar com isso.
Não.
Não! Eu vou é mostrar isso.
Entrei no primeiro bar, que coincidentemente estava bem na minha frente no exato momento em que conclui meu pensamento.
Me deixei embebedar.
Pensava: Há mais de três anos usava espartilhos e combinação sem nenhum homem jamais ter visto tais enfeites, estava no auge dos meus 22 anos, meu corpo estava lindo, meu rosto luminoso. Porque não virar dançarina? Ali mesmo, no bar. 
Em 71 as pessoas tiravam suas roupas na rua mesmo, as estudantes adoravam "protestar".
Decidi.
Um gole mais pra tomar coragem. Talvez dois goles pra tomar coragem. Dessa vez, o gole é duplo, está bem, mais um então seguindo meus instintos. 
Não conseguia parar de beber. Estava muito nervosa. De  repente: Jazz! 
Começou devagar, eu só me levantei, com um olhar fulminante, para todos presentes no bar. Mexi meu quadril, subi no balcão, tirei peça por peça de roupa. Numa empolgarão tão misteriosa e controlada, com movimentos fluentes que de certa forma lembravam o ato sexual. Naquele dia eu estava especialmente arrumada, a lá filme mudo dos anos 50. Desfiz laços, abri botões, mexi todo o corpo, suei, sorri, e me senti muito desejada.
A música acabou. 
Eu me sentia completamente nua. Apenas calcinha, soutian, minhas pérolas e meia na perna esquerda escoltavam os mamilos e pelos pubianos, que seriam em breve os próximos a serem exibidos naquele súbito. 
Deprimente. 
Desci do balcão, todos me olhavam, eu me vesti rapidamente, por último coloquei meus óculos e peguei minha bolsa, saí sem pagar a bebida. Tudo bem, volto e pago depois.
Não, não! Vou voltar e  pagar! 
Contei o dinheiro na rua mesmo. Tomei um ar e voltei, joguei o dinheiro no balcão, um cara passou a mão na minha bunda.
Eu xinguei. Ele segurou meu braço e me olhou fundo nos olhos e seios. Consegui me soltar e saí. Meu coração quase saiu pela boca e minha adrenalina estava a mil. 
Minha pintura e laquê estavam derretidos. Dó de mim. 
Sai quase que correndo.
Depois um pouco mais depressa.
Ok, sapatos na mão e corri até em casa, num acesso, não costumo ser atlética, uso saltos. Observem, a única mulher que usava salto e soutian da cidade estava, naquele momento, correndo desesperada com sapatos, uma meia na mão, bolsa aberta e casaco do lado contrário. Cheguei em casa esbaforida. 
O bar era perto de casa, passava por ele todo dia na volta do trabalho.
E agora? Como votaria diariamente para casa?
Pensei a noite inteira enquanto colocava pepinos no olhos e escaldava os pés. 
De manhã, já tinha uma resposta. Vou me camuflar. 
Tinha uma vizinha heppie. Bati em sua porta 6 da manhã. Ela não atendeu, e quando desisti, a vi subindo as escada, chegando de manhã em casa; ela, completamente bêbada, certamente não lembraria de nada. Eu a interpelei: me dê suas roupas?
Ela simplesmente tirou a roupa, ali, no corredor, toda a roupa, mesmo. 
Eu… 
Eu entrei na minha casa, um misto de euforia e nojo. Totalmente estupefada com o que a invenção da pílula anticoncepcional havia feito com as mulheres e seus pudores. E comecei a me vestir de trapo, a vizinha bateu na porta nua, eu abri, ela enfiou a mão no meu bolso, pegou suas chaves e sorriu.
Naquela manhã, nada de laquê, batom, nada de salto, corsert, nada de perfume, laços, amarrações, soutian. nada.
Eu bebi café por tediosa e interminável uma hora. 
Fui para o trabalho, ninguém notou a mudança. Na rua ninguém me olhava, me via, nem estranhamento, nem desdém, nem interesse, nada, somente a indiferença. No começo achei bom, mas depois me deu saudade. 
Meses se passaram, eu passei umas 80 vezes na frente daquele infeliz bar, ninguém me olhou. 
Certo dia… Vontade de dançar, porque não?
O que há de tão errado nisso?
Ué, tudo de errado, RISCOS.
Fui para casa, minha cabeça me questionava, mas meu corpo estava exalando tesão, um tesão enrustido de menina de 22 anos ainda virgem. E o impulso também era de menina, inconseqüente que era, comecei a me vestir, pensava: ah, é só pra mim, não vou sair de casa, vou me vestir, me pintar e me masturbar.
Me vesti, me pintei e não me masturbei. Fui para o bar. Sem pensar, abri a porta e fui.
Entrei no bar e disse: Por favor, um martini e um jazz. Não gostava de martini, preferia uísque, mas tinha uma imagem de sensualidade que envolvia aquele copo. O barram fortão e tatuado sorriu. Me serviu e disse que podia ficar a vontade. O martini saiu por conta da casa, e por conta de meu charme também. Saiu também por conta das outras 6 doses de uísque que bebi e paguei em dinheiro após o número de dança que apresentei naquela noite.
Desde então,oito anos se passaram de uma vida dupla, de dia emprego tedioso, decorando bolos de noiva e abrindo massas de foundant tão brancas e iguais que já perderam a doçura e o encanto. A noite diva do jazz em uma bar escuro, com números burlescos repletos de plumas e paetês. Banda ao vivo, eles são os meus garotos e sabem disso, o trompetista ostenta com orgulho uma renda de combinação dependurado em seu instrumento. Homens gritando e mulheres olhando intensamente, elas gostariam de estar no meu lugar. Porém, as mulheres que tinham tamanho bom gosto já haviam sido pegas pelo tempo e gravidade. 
Foi a melhor época da minha vida.
Até meus peitos caírem. Parei de dançar. E me mudei para o brasil. Tive um filho. Anos se passaram. 
Ainda sou sofisticada. Ainda uso espartilho, mas apenas em dias de festa.
Minha neta veio esses dias dizer que quer dançar. 
        Irei assegurar-me que jamais escute o som do jazz.
        Ele corrompe as pessoas.



MARIA CLÔ       



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